A maioria das pessoas que conheço que vêm a Berlin pela primeira vez ficam encantadas com 3 coisas: a espantosa quantidade de área verde; o excelente transporte público; e a segurança.
E quase automaticamente, vem a pergunta: dá para ganhar bem trabalhando aqui?
Aparentemente, uma coisa não tem nada a ver com outra, mas penso que a conexão é mais profunda do que parece à primeira vista; eu explico.
Berlin não é um parâmetro muito válido porque é considerada uma cidade pobre para os padrões alemães, uma vez que aqui é a sede administrativa do país e não possui muitas indústrias. Mesmo assim, dá para dizer uma coisa que vale para o país todo e que talvez deixe muita gente aí no Brasil chocado: a diferença entre o salário de um operário (ou caixa de supermercado) e de um diretor de empresa é, no máximo, 6 vezes. Isso inclui funcionários públicos de alto escalão, professores universitários doutores, juízes e médicos. É claro que estou falando da maioria da população alemã (um diretor de uma multinacional com 30 mil funcionários espalhados pelo mundo obviamente ganha muito mais, mas não representa a média da qual estou falando, que é de empresas pequenas e médias).
Um amigo comentou que o mesmo acontece na Suécia; um professor universitário, com doutorado, ganha, no máximo 2 mil Euros líquidos. Para se ter uma idéia, um almoço no restaurante universitário lá custa 8 Euros. Não é fácil, né? No entanto, esses países são os que se considera como tendo a melhor qualidade de vida.
Então, imagine: é como se no Brasil, o rendimento máximo bruto de qualquer pessoa que vive de salário fosse R$ 5 ou 6 mil reais. Disso, quase 40% ficam retidos para os impostos, aposentadoria e plano de saúde obrigatório. Pois é, não sobra muito.
Por isso é que aqui a gente não vê um funcionário público, seja ele quem for, se achando o Sr. Rei da Cocada Preta (no Brasil, nosso apartamento ficava perto do ministério público; era de dar nojo a empáfia de algumas pessoas que trabalham lá). Os alemães não têm muita sobra no orçamento, como se pode ver; mas adoram viajar e ler. Então, lavam e passam a própria roupa, fazem a própria comida e limpam a própria casa.
Aqui não tem pet shop para dar banho em cachorros; os próprios donos se encarregam disso. A maior parte das pessoas compra seus móveis na IKEA e aluga um carro ou reboque para levar a encomenda para casa. Para montar uma cozinha inteira, por exemplo, é só ler o manual de instruções; tem que botar a mão na massa mesmo.
Os professores da minha escola são altamente qualificados (a escola é uma das que melhor paga); pois todos levam marmita e ninguém acha feio. Andam o máximo que podem de bicicleta e, no inverno, de transporte público. Os que têm carro usam modelos menores (aquelas horrosidades gigantes com vidro fumê e ar condicionado ligado no máximo quase não tem aqui, para minha felicidade). Outro efeito colateral é que o trânsito é excelente; a velocidade máxima permitida nos bairros é 30 km/h e eu nunca vi engarrafamentos na hora do rush.
Os prédios não têm porteiro e uma vez por semana vem uma empresa terceirizada varrer as escadas. Quando chega uma encomenda e não estou em casa, sempre tem um bilhetinho na caixa do correio avisando com qual vizinho está o pacote; é só ir lá pegar (e aproveitar para fazer um social). Às vezes a gente também fica com correspondência de vizinhos.
É claro que tem gente rica também (geralmente donos de grandes negócios). Mas eles jamais destratam serviçais, simplesmente porque aqui não há subcategorias menores, como no Brasil. As pessoas ricas também metem a mão na massa, por uma questão de filosofia mesmo.
No Brasil, ainda trazemos indícios da cultura escravagista; todo mundo quer ter alguém para mandar (e, de preferência, humilhar e maltratar, para mostrar quem é que manda). O que puder ser terceirizado, será. As pessoas contratam outras para fazer as coisas mais básicas, de levar cachorro para passear até levar o lixo para a rua; e isso é em todos os níveis.
Uma amiga brasileira que mora aqui me contou das chateações que uma alemã que morou no Brasil passou porque gostava de cuidar do próprio jardim (realmente, eles adoram). A questão é que a moça morava no Alphaville, condomínio de alto padrão em São Paulo; frequentemente era motivo de chacota porque uma pessoa do nível dela (adoro isso de “nível de pessoa”; só que não) podia muito bem pagar um jardineiro. É a cultura da sinhazinha moça e do senhor de engenho levada às últimas conseqüências.
Fico triste quando vejo a vida girar em torno na ostentação no nosso país; como as pessoas não têm vergonha de ganhar 30, 40, até 50 vezes mais que outras (sendo que boa parte é funcionária pública) e ainda acham isso o máximo; ficam esnobando o sucesso como se fosse mérito próprio, e não uma distorção do sistema. É um tal de quem consegue ganhar mais para comprar um carro maior, mandar o máximo que puder com uma prepotência totalmente alheia à realidade das coisas, que chega a doer. Seria apenas ridículo, se não fosse tão dramático.
A mordomia é irresistível (quem não gosta), mas qual é o preço disso tudo?
Só para terminar fazendo a conexão com o assunto lá do começo: se a diferença de salários não é grande (e olha que a Alemanha é a maior economia capitalista da Europa), não tem porque haver essa violência toda que a gente experimenta no Brasil.
Aqui tem gente pobre, mas não tem favela. O transporte público funciona bem porque ele é essencial; até os funcionários públicos mais graduados dependem dele para se locomover. As áreas verdes são muitas e bem cuidadas porque não são privilégio de bairros chiques; tem na cidade toda, para todo mundo.
Fico vendo as notícias do Brasil e fico pensando: não seria a hora das pessoas acordarem e passarem a viver como ricos de verdade?
sábado, 28 de dezembro de 2019
Lígia Fascioni sobre as maravilhas de um abismo social pequeno
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